2 de julho de 2011

Direito de ser ela

Gabriela desenhou no chão uma ampulheta com um pedaço de tijolo velho. Escreveu verticalmente seu nome dentro dele, substituindo a matéria areia, pelo seu pequeno projeto de vida. Para alguns, talvez fosse apenas um desenho que demarcasse um espaço, mas para os pouco chegados, sábia que aquilo trazia algo de místico. Era o sonho da pequena menina que sonhava em ser grande como a Sacerdotisa das velhas cartas de tarot de sua mãe, D. Iracema.

Trazia consigo a esperança de ultrapassados sonhos e movia seu mundo a partir dos pequenos retalhos de uma história mal contada pelos acontecimentos trágicos de uma vida sem ninguém.

O pai ela não tinha. Era almirante de um barco a vela que se perdeu no grande mar que lhe proporcionou o destino. Não o conhecera. Só sabia do pouco que lhe fora reservado como direito a um ponto de partida.

Envolvida em seus jogos e a ganância de prever o futuro, D. Iracema não tinha Gabriela. Perdeu a filha minusciosamente nas entrelinhas de um misticismo sujo e barato. Gabriela também teve que lançar-se ao mar. Navegar sozinha em seu apertado e cheio de furos barco.

Acostumou-se com a miséria de afetos dos que se achegavam comovidos por pena. Tragou em seu peito um ar de desdém e engoliu para dentro de si, as estranhezas subversivas de livros sujos de auto-ajudas, que a pouca intelectualidade lhe proposura ler.

Não pode voar em seus planos. Suas utopias, maiores que ela mesma, eram suas e pouco suficientes para sequer lançar fora o terreno baldio que se instalou em sua psicanálise barata. Teve sempre que aceitar os lixos ditos reciclados em seus solos, pois tudo se refinou num tom primoroso, drenando somente vermes de uma causa injusta.

Viveu com sentimentos filantrópicos. Daqueles que só favorece a quem de fato doa, mas nunca quem tem o direito de receber. Filantropismo não sustenta, não move. Apenas consome. E pensar que o sonho dessa garota era apenas ser grande.

O tempo lhe tornaria grande o suficiente para que pudesse perceber que era pequena. Delimitada pelo espaço. E que a mulher das cartas de um papel velho, era apenas um desenho mal interpretado de todo o avesso. Era pretensão demais para quem tinha tão pouco.

Faltava-lhe os pecados, as desilusões afetivas. Essa já tinham sido roubadas antes mesmo que ela pudesse ser gente. O espaço do lado de fora era maior que o que tinha por dentro. Era algo cheio de vazio. Uma limitação ponderada a regalias de laços desfeitos. Foram os desajustes tirados pelos seus pais. Que a fazia pensar com piedade deles também, pois pensava que também pudessem sido tirados algo da essências daqueles que apenas a gerou.

Furtaram o seu direito de ser Gabriela, Iracema, Beatriz, Sacerdotisa. Entregaram-lhe como tarefa a responsabilidade de submeter-se a não ter nada, ninguém e mais nada. Sobrou apenas uma hist´ria para ser contada por um contista qualquer. Num tempo qualquer. Em algum lugar, mesmo que seja qualquer. Gabriela tinha sonhos. O seu contador também. Isso fez com que ela apenas deixasse de existir nas linhas, para viver uma experiência longe daquela gente cheia de ódio e pecado. Ela partiu, mas deixando em seu coração uma volta.

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