2 de junho de 2012

Flor da Pele

Sexta-Feira Branca

Sentei a beira da cama, voltei a fechar os olhos e silenciosa prece eu fiz. Pedi proteção para o dia, lembrei-me dos familiares vivos, dos amigos e de toda a humanidade. Levantei, lavei o rosto e despejei junto com aquela água, todas as incertezas, afinal de contas já era sexta-feira, a primeira do mês, a primeira naquele novo emprego, a primeira depois de anos que eu teria que encarar novamente com certa suavidade e paciência, cuidado e silencio, afinal de contas eu já disse era sexta-feira.

Enquanto fervia a água para o café, tomei um banho, mandei junto com aquela água toda a negatividade pessimista por mim criada durante a semana que tinha passado, pois sexta-feira era um dia assim, propicio a energização de coisas boas, pois não sabiam os desavisados que esse era um dia da semana ótimo para descarregar as energias pesadas, assim também era as sextas, muita coisa pesada pairando no ar, alertou sempre minha mãe, a mãe de minha mãe e a minha mãe de santo. Queria eu saber se o mundo começou a ser criado no domingo ou num sábado de noitinha, com um chuvisco fino, mas com estrelas e lua gorda no céu. Domingo! Lembrei-me da catequista falando que provavelmente teria sido num dia de domingo que Deus começaria a criar todas as extensões. Acredito que naquela época não havia macarronada, cerveja, futebol à tarde e nem Fantástico a noite, por isso ele começou a trabalhar no domingo.

Desliguei o chuveiro e me enxuguei numa toalha macia de cor branca, depois vesti uma cueca também branca e sai assim, só de peça íntima pela casa. Fui à cozinha, passei o café, abri a geladeira, peguei o queijo, parti o pão, enfiei o queijo no pão, peguei a xícara de louça que mamãe havia me dado antes de sair do interior, sentei a mesa, daquele jeito, só de cueca, adocei o café, mordi o pão, misturei com o café quente, ainda queimei a ponta da língua, talvez sinal para silenciar até mesmo os pensamentos, pois era sexta-feira, dia de concentrar na paz. Levantei, coloquei a xícara, a faca e o bule de café dentro da pia. Voltei para o quarto, coloquei no pescoço um colar cruzado por uma entidade do terreiro lá do interior, aquele que eu ia sempre, mas que agora morando na capital ficou difícil. Terreiro não falta, mas cada um sabe onde é seu Ilê, a gente firma o pensamento e de vez em quando na saudade a gente aparece lá, talvez ainda em pensamento ou sabe-se lá quando a gente dorme, dizem de desdobramento, não sei, só sei que depois de vestir o colar, coloquei uma bata branca, dessas meio indianas, confeccionadas ali mesmo no centro de uma cidade localizada no hemisfério sul.

Abri à gavetinha do criado mundo, peguei uma vela branca, subi na cadeira e a acendi dentro de um copo em cima do guarda-roupa, outra prece eu fiz, proteção meu Pai, proteção. Axé, axé, axé. Ainda pensei e pedi um pouco de força de meu pai Oxossi e me permiti ainda bendizer, quem sabe, um amor, um flerte, um palpitar mais intenso para mamãe Oxum. Axé, repeti de novo. Desci da cadeira, vesti a calça jeans branca posta em cima da cama. Calcei uma sandália, dessas, estilo Jesus de Nazaré. Certifiquei se a vela ainda permanecia acessa. Às vezes elas se apagavam sozinhas, diziam que era a qualidade da vela, mas eu pensava serem os Orixás descontentes com a pressa do meu cotidiano soprando para que eu voltasse e ficasse mais um pouco ali, com eles, mas estava acessa. Sai do quarto, apaguei a luz do banheiro. Fui à cozinha, fechei o registro do botijão de gás, apaguei a luz da cozinha, a luz da sala, a luz da varandinha. Bom dia, eu disse ao Bob, cachorro de rua que sempre se enfiava entre as grades do meu portão e vinha sacudindo o rabo. Voltei na cozinha, peguei um pão, coloquei queijo, sai de casa, coloquei o pão na entrada do portão, disse come Bob, come...

Bom dia para lá e para cá. Prô jornaleiro passando na rua de casa, pra dona, hum, esqueci o nome dela. Bom dia para quem queria um bom dia. Cruzei a primeira encruzilhada abertíssima, pedi licença, saudei quem tivesse ali. Eu não via, nem sempre sentia, mas mamãe sempre dizia que eles estavam em todas, então era bom pedir licença, afinal de contas, nunca se sabe quando vai precisar sair correndo por ai e pedir proteção não é verdade?

Era sexta-feira, eu todo de branco, indo trabalhar. Bom dia, bom dia, bom dia. Passou por mim pessoas de todas as cores e eu de branco, como mamãe me ensinou. Macumbeiro? Pensei baixinho! Não, apenas alguém que acredita na força da natureza e emprega nelas, características, ou arquétipos aprendidos no curso de antropologia religiosa ao qual fui obrigado a fazer por ter estudado numa instituição catolissíssima. Incrível, não acham? Você é puta, bicha, pervertido, de esquerda, de direita e a sociedade te julga, mas quando você abre a carteira e retira aquele suado salário para pagar qualquer investimento dentro desse covil de gente meramente humana, você é bem recebido. Entenderam? Não? Assim, se você é bicha você não presta, mas quando vai pagar a oferta do dizimo, você se torna um sujeito bom cooperando com a obra do Senhor. Isso não é crítica, é facto. Gosto de dizer e escrever facto em vez de fato, sou assim, não vou mudar, estou todo de branco. Axé, axé, axé!

Subo no ônibus, todo mundo olha dos pés a cabeça um ser humano vestido de branco por inteiro, retiro meu óculos escuro da bolsa, não quero ver o mundo com meus olhos naturais, me dá ância, afinal, estou todo de branco, em pé e o ônibus balança para lá e para cá. Não sei como o queijo nunca voltou em forma de coalhada. Descem umas três pessoas que estava sentada, a gente corre e senta também. Bem nas sextas-feiras, e já foram tantas, pois para sair de onde eu moro para qualquer outro lugar da cidade, só esse ônibus poderia fazer isso, eu sento sempre do lado de uma mesma senhora, meio gorda, de cabelos gigantissimos, às vezes percebo um excesso de pelos pelas pernas e braços, uma sobrancelha que me lembra sempre as sobrancelhas de Monteiro Lobato. Não sei como consigo ver esses pelos nas pernas, pois essa senhora veste uma saia que vai até os pés, talvez ela puxe um pouco para cima, afinal de contas, ninguém ali vai ficar reparando em suas pernas. Paz do Senhor irmã, ela diz a uma que vai descer. Paz do Senhor, ela diz a outro que acabou de subir. Paz do Senhor! Paz do Senhor! Paz do Senhor! E eu lá querendo dizer: Paz de Oxalá! Axé, axé, axé.

Levanto, puxo a cordinha, desço no próximo ponto. Todo mundo olha. Estar todo de branco, ninguém parece se conformar, mas de preto todos gostam, afinal de contas, dizem que o preto emagrece, que seja, era sexta-feira e eu estava fazendo como mamãe dizia, – veste o branco menino, toda sexta veste o branco. Ali eu desço, passo em frente à Igreja, faço sinal da cruz, toda benção é bem vinda.

Continuo andando, quebro aqui e ali, passo por lá, desço por acá, e assim vou indo. Passo por uma encruza fechada. Epa! Rosas, Sidra e cigarros. A noite foi boa, penso eu, pedindo licença as moças. Vou indo, é a primeira sexta nesse novo emprego. Levanta a cabeça, penso. Macumbeiro, vão pensar, chamar, escrever no espelho do banheiro. Que seja, sou macumbeiro mesmo. Não desses macumbeiros que tem por ai, sou bem do tipo que apenas acende velas, toma banho de ervas, faz reza brava. Saudade da minha mãe de santo, daquele que recebia o caboclo, daquela que girava na cigana, daquele que trazia o preto velho tal. Aí, frequentava um terreiro, lá é meu Ilê, só lá, por isso por ali não vou a outro, enfim, parei a porta do prédio daquela imensa redação. Fiz outra prece baixinha, abri a porta, segui em direção do elevador. Não olhei para os lados, só disse um bom dia ao guarda, a recepcionista. Tomei aquele elevador, duas pessoas, no próximo andar subiu mais dois, sem que até o sétimo andar estávamos em oito, quando a capacidade era para seis, mas enfim, quem respeita a capacidade das coisas? Eu estava de branco, não era vergonha, mas até a aceitação que você é diferente, o mundo meio que já sugou todas as suas forças. Todo de branco, Oxalá, todo de branco. Segui até minha mesa, sentei, dei bom dia, sorri, trabalhei, trabalhei e trabalhei. No momento de folga verifiquei o horóscopo, depois trabalhei mais um pouco. Almocei sentado ali, sem levantar a bunda para qualquer coisa, apenas para ir rapidamente ao banheiro. À tarde, trabalhei, trabalhei, pensava no momento de ir embora, na hora de fazer o sentido contrário até voltar em casa, todo de branco, encruza fechada, encruza aberta, corpo fechado, caminhos abertos, afinal de contas, era sexta-feira, eu estava de branco. Axé, muito axé meu Oxalá.

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