14 de julho de 2012

Flor da Pele

Que Deus a tenha

Canalha! Gritei da sacada daquele nosso aconchegante conjugado. Cachorro! Berrei entre canalha, filho da puta e bicha. Canalha! Canalha! Canalha! Ele de Xangô, avisou alguém um dia e eu ali, toda boneca bancando a donzela de plástico, triturada, furada, comida e jogada em restos ao lixo. Canalha filho de uma puta, que Deus a tenha. Viado! Meu vocabulário meio repetitivo. Voltei para dentro do quarto, fechei a porta da sacada, sentai na cama, desabei em choro, copiosas lágrimas, uma cachoeira de Oxum, maré de Iemanjá. Mas que bicha, canalha e filho da puta, claro, que Deus a tenha. Calma, meu Eu Superior soprava baixinho, quase mudo dentro da minha cabeça, mas o ego, aquele lado esquerdo berrava um canalha todo fodido, um filho da puta de boca bem cheia, que Deus a tenha, encobria o lado direito, um bicha. Ele de Xangô e eu ali, toda trabalhada na rapariga desolada, bancando a traída, ouvindo o choro da criança no outro cômodo, chorando de fome, tendo que dar o peito, doído por dentro, vazando leite por fora. Filho, meu e dele, nosso, daquele canalha. Outro de Xangô, eu com a maquiagem borrada, cabelo bagunçado, desequilibrada. Chia a panela de pressão na cozinha, a criança mama no seio direito, redondo, cheio de leite. Canalha, pensando ainda a cabeça, bicha, filho da puta.

Novela que era das oito começa as nove, o arroz queima na panela, meu pé balançando o carrinho da criança, dorme, dorme bebê. A cabeça imaginando, projetando a mira certa da minha mão na cara daquele canalha.

Enquanto passa a novela e bebê dorme, viro o arroz queimado no lixo, ligo o fogão, coloco água para esquentar, ferver, vou para o banheiro, faço um xixi quente, sai uma bolinha de merda, limpo o cu, anus, bumbum quer respirar, canto, fico séria novamente. Papel no lixo, junto um canalha, canalha, canalha. Ligo o chuveiro, tirou a roupa, solto o cabelo, entro debaixo d’água morninha, ensaboo-me, as partes, os vãos, as pregas. Lavo o cabelo, canto Titãs, Roberto Carlos, uma música da Tele Sena, fecho o chuveiro, me enrolo na toalha, caminho até o quarto, deixo a toalha cair, vou para frente do espelho, olho os dedos dos pés, as unhas precisam ser feitas; observo os pelos das pernas e da testa da boceta, precisam ser depiladas. Não gosto da cicatriz da cesariana, o peito ainda vaza leite, o pescoço com marca de chupão feito no sexo de ontem à noite, uma bolsa de olheiras enormes, um cabelo para pintar, uma sobrancelha para limpar, coisas de meninas, mulher. Vejo a mim mesma toda assim, meio sem sal, nem açúcar e aquele canalha, filho da puta me assombrando os pensamentos. Criança chora, cólica infantil, pingo remédio em sua boquinha. Eu, mulher de dois machos de Xangô.

Telefone toca, é a mãe, a minha, pois o filho da puta já não a tem, que Deus a tenha. Ela que fez esse de Xangô. Mamãe pergunta pelo canalha, mudo de assunto, ela sempre falava que tinha avisado, como se dor de cabeça de fato viesse com aviso prévio. Pergunta do menino, aquele de Xangô, meu filho. Tá dormindo mãe, eu falo. Dá beijo nele, fala ela. Dou sim mãe. Final de semana estou aí; vem sim mãe; qualquer coisa me liga; sim mãe, ligo sim; não está precisando de nada filha?; não mãe; qualquer coisa pode ligar, seja a hora que for; pode deixar mãe... Mãe, final de semana a gente conversa e se eu precisar de alguma coisa eu ligo, beijos, boa noite, tu-tu-tu...

Corro para a cozinha, a água que estava no fogo evaporou e quase foi junto o fundo da panela. Aí Deus, isso tudo é magia violenta em cima de mim? Pego sal grosso, volto pro banheiro, encho um copo com água morna do chuveiro, jogo o punhado de sal grosso dentro do copo. Mexo com a ponta do dedo, o indicador, jogo do pescoço para baixo, peço proteção, daí abro margem, quero o meu canalha de volta, não sei viver sem ter você, fato! Mentalizo, idealizo e a porta da sala se abre, a porta bate, ele me chama, vou meio emburrada, ele diz te amo, eu digo um também, ele me abraça, eu abraço ele, a criança dorme, a novela acaba, ele é filho de Xangô, meu homem, bicha não, coisas ditas no furor da raiva, mas ainda assim, uma coisa ele não deixa de ser, o que? Uai, f-i-l-ho-d-a-p-u-t-a. Que Deus a tenha, claro, pois afinal de contas, a mãe dele trabalhava na noite, servia-se a todos os homens da cidade. Esse de Xangô, não sabe quem é o pai, nem a puta, a mãe do filho da puta, mas ele é assim, canalha e filho da puta, que Deus a tenha!

Um comentário:

reinaldo del trejo disse...

Esse texto é forte pra caralho!
E muito bem escrito, não sei se foi um desabafo ou algo parecido.
Mas gostei...
Lia em voz alta, “CANALHA, FILHO DA PUTA” Até que minha vó apareceu na sala, então comecei a ler em voz baixa, e toda a entonação se perdeu em minha voz roca.
Adorei!
Bom texto.